Amizade: hábito do afeto, laço que vira virtude

Amizade: hábito do afeto, laço que vira virtude

Na semana retrasada, no dia 20 de julho, comemoramos o Dia do Amigo no Brasil. Hoje, 30 de julho, celebramos o Dia Internacional da Amizade. Curiosamente, é a única data comemorativa no calendário que se repete em um intervalo tão curto. Simbólico nos tempos atuais, pois deveríamos celebrar a amizade todos os dias, como um hábito cultivado com energia e constância.

Construir uma amizade — assim como adquirir um novo hábito — exige tempo, trabalho e disponibilidade afetiva. Isso desafia a lógica da chamada “Sociedade Adolescente”, termo que descreve o nosso modo de viver atual em busca de soluções instantâneas e baixa tolerância à frustração. Nessa dinâmica social, os vínculos se afrouxam, muitas vezes reduzidos às interações rasas com emojis sorridentes, foguinhos e cancelamento, através de bloqueio e delete de quem não é mais amigo ou pensa diferente.

Essa fragilidade do laço social é um dos pilares da crise de saúde mental que atinge crianças e adolescentes.  Na última Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) de 2019, 30% dos adolescentes achavam que ninguém se preocupava com eles.  E a angústia avança… e se torna ainda mais profunda do que não ter nem um amigo para se apoiar. Há também uma crítica à qualidade das relações: uma das perguntas que crianças e adolescentes têm mais se perguntado ao ChatGPT é “Por que me sinto tão sozinho(a) mesmo com amigos?”.

Esses dados apontam para uma conexão direta entre o sofrimento psíquico e a falta de interlocução. Uma pesquisa recente publicada pela Harvard Business Review mostrou que, de 2024 para 2025, a busca por companhia e terapia no ChatGPT saltou de segundo para primeiro lugar entre os usos da Inteligência Artificial (IA). Diante desse cenário, nosso papel – como pediatras, hebiatras, psicanalistas – é ajudar o paciente a transferir as angústias humanas endereçadas ao robô para um Outro que o enlace nos vínculos reais e identificações que o sustente psiquicamente como sujeito.

Incentivar a amizade verdadeira é mais do que promover saúde mental — é uma aposta no outro. Exige cuidado e resiliência. É ter a capacidade de suspender momentaneamente nossas verdades para escutar ativamente às do outro. É sobre concordar em discordar. É movimento, dança; expressão, resistência. Um exercício de humanidade que vai muito além da capacidade “apaziguadora” que a IA tem a nos oferecer. Segundo o filósofo Roman Krznaric, a amizade é mais do que ter compaixão pelo outro: é ter empatia, pois trata-se de tentar ver o mundo sob a perspectiva do outro, compreendendo não apenas o que a pessoa sente, mas também por que ela sente e de que forma ela sente.

Convido o leitor, neste Dia Internacional da Amizade, a não se limitar ao 30 de julho. Que essa data se transforme em um hábito diário “de bem agir” — aquilo que Aristóteles chamava de Virtude. No século IV a.C., o filósofo grego já definia a amizade como uma virtude essencial à vida: os bens que ela proporciona — como riqueza, prestígio ou sucesso — não podem ser plenamente desfrutados ou sustentados sem a presença de amigos.          

 A amizade é uma experiência de Ser, não de ter. Como canta Emicida, “Quem tem um amigo tem tudo”.

 

Saiba mais:

 

  • BAGWELL, C. L.; SCHMIDT, M. E. The nature of friendship. In: ______. Friendships in Childhood and Adolescence. ed. New York: Guilford Press, 2011. cap. 1, p. 3–29
  • KLEIN, Marina Vasques. Adolescer: a dor e a delícia. Porto Alegre: Artmed, 2011
  • BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar: 2019. Rio de Janeiro: IBGE, 2021. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101852.pdf. Acesso em: 26 jul. 2025.
  • ZAO‑SANDERS, Marc. How People Are Really Using Gen AI in 2025. Harvard Business Review, 9 abr. 2025.
  • KRZNARIC, Roman. O poder da empatia: a arte de se colocar no lugar do outro para transformar o mundo. São Paulo: Zahar, 2015. 262 p. ISBN 978‑8537814567
  • ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. 6. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Os Pensadores).
  • Quem tem um amigo (tem tudo). Participação: Zeca Pagodinho, Tokyo Ska Paradise Orchestra, Prettos. In: AmarElo [CD]. São Paulo: Laboratório Fantasma, 2019.
  • VIBES EM ANÁLISE (Podcast). Episódio “Da Rixa ao Ranço”. Apresentação: André Alves e Lucas Liedke. São Paulo: Floatvibes / Dia Estúdio, 5 jun. 2025. Disponível em: Spotify e Apple Podcasts. Acesso em: 26 jul. 2025

 

Relatora
Maíra Terra Cunha Di Sarno
Médica Pediatra e Hebiatra e Psicanalista
Membro do Núcleo de Estudos de Saúde Mental da Sociedade de Pediatria de São Paulo