Aleitamento materno e prematuridade

Relatoras:
Maria José Guardia Mattar
Pediatra e Neonatologista, Coordenadora do Centro de Referência em BLH para a Região Metropolitana e Grande SP-HMLMB/SES. SP, Mestre em Ciências da Saúde pelo Hospital Maternidade Leonor Mendes de Barros/SES. SP, Coordenadora da Rede Paulista de BLH,Consultora Nacional de BLH/ Fiocruz/MS e Vice-Presidente do Departamento de Aleitamento Materno da SPSP.

Marisa da Matta Aprile
Mestre em Pediatria pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Professora Colaboradora da Disciplina de Pediatria da FMABC, Coordenadora da Pediatria do Hospital Mario Covas e Secretária do Departamento de Aleitamento Materno da SPSP

Valdenise Martins Laurindo Tuma Calil
Pediatra e Neonatologista, Mestre e Doutora em Pediatria pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Professora Colaboradora Médica do Departamento de Pediatria da FMUSP (disciplina de Neonatologia), Médica Diretora Técnica de Serviço de Saúde do Berçário Anexo à Maternidade do Hospital das Clínicas da FMUSP, Assessora da Presidência da Sociedade Brasileira de Pediatria e Membro do Departamento de Aleitamento Materno da SPSP.

Virginia Spinola Quintal
Pediatra e Neonatologista, Mestre e Doutora em Pediatria pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Professora Colaboradora do Departamento de Pediatria da FMUSP (disciplina de Neonatologia), Coordenadora do Banco de Leite do Hospital Universitário da Universidade de São Paulo e Presidente do Departamento de Aleitamento Materno da SPSP.

 

Benefícios do leite humano para o recém-nascido pré-termo

A utilização do leite da própria mãe acarreta inigualáveis benefícios para os recém-nascidos pré-termo (RNPT), reduzindo significativamente a frequência de intolerância alimentar. O predomínio de proteínas do soro sobre a caseína (60:40) resulta em maior digestibilidade e melhor qualidade dos aminoácidos lácteos. Quanto ao perfil lipídico, a lipase estimulada por sais biliares constitui fator diferencial, bem como o padrão de ácidos graxos, com predomínio dos essenciais e daqueles de cadeia longa. Este perfil tem importantes repercussões no crescimento, na função visual e cognitiva. Quanto aos carboidratos, a lactose não absorvida induz, juntamente com o “fator bífido”, a proliferação de flora bacteriana não patogênica; os oligossacarídeos, por sua vez, têm função de defesa, inibindo a adesão bacteriana às superfícies epiteliais. Vários estudos mostram ainda a maior concentração de alguns nutrientes no leite produzido por mães de RNPT durante as primeiras duas a quatro semanas de lactação, destacando-se os teores de proteínas, fatores de defesa, energia e lípides, triglicérides de cadeia média, sódio, cloro e vitaminas lipossolúveis.

Os fatores bioativos, em número superior a 250, conferem elevada proteção contra infecções em geral e contra a enterocolite necrosante. Os ácidos graxos Omega-3 e as substâncias antioxidantes do leite materno (LM) reduzem a frequência de retinopatia da prematuridade, enquanto a menor exposição a proteínas heterólogas protege contra doenças atópicas, alérgicas e auto-imunes. A obesidade e as doenças cardiovasculares futuras também são menos prevalentes em RNPT alimentados com LM.

 Quanto ao desenvolvimento neurológico, estudos demonstram um maior coeficiente intelectual aos oito anos de idade em RNPT que receberam LM por pelo menos quatro semanas, sendo este efeito dose-dependente. O aleitamento materno favorece ainda o desenvolvimento do sistema sensório-motor-oral, evitando problemas futuros de mastigação, oclusão dentária e apnéia do sono. Por fim, o estreitamento do vínculo mãe-filho decorrente do aleitamento materno reduz a frequência de abuso, negligência e abandono dos RNPT.

Manutenção da lactação da mãe do recém-nascido pré-termo
O leite da própria mãe do RNPT é o alimento ideal para alimentá-lo. Portanto é importante que a equipe multidisciplinar apóie esta puérpera que está separada do seu filho logo após parto, nas primeiras 4-6 horas, para iniciar a ordenha para manutenção da lactação e oferecer o leite materno ordenhado (LMO) in natura, se as condições clínicas permitirem.

A manutenção da lactação através da extração manual deverá ser a técnica de eleição, mas nos casos de dificuldade e para manter a produção com maior volume, poderão ser utilizadas as bombas de extração elétrica ou manual obedecendo aos requisitos higiênicos sanitários da Resolução da ANVISA (RDC171) e normas técnicas da Rede Brasileira de Bancos de Leite Humano (RedeBLH-BR).

“Na impossibilidade de oferecer o leite da própria mãe para o prematuro, lançamos mão do Banco de Leite Humano (BLH)”.

É de extrema importância que a equipe da neonatologia além de incentivar e apoiar essas mães na manutenção da lactação tenha uma interação com a equipe do BLH, tanto para o processamento como o armazenamento desse leite até que o prematuro tenha condições de recebê-lo.

Como prescrever de forma segura o leite humano ao RNPT

É muito importante que as unidades neonatais tenham rotinas estabelecidas de prescrição de leite para que se possa, de acordo com o quadro clínico da criança, lançar mão das diferentes amostras doadas em prol da saúde e nutrição da criança.

O leite da própria mãe deve ser a primeira escolha para o RNPT, na falta deste, o leite doado é uma boa opção. Sua seleção depende do estado clínico da criança. A equipe do BLH deve manter os profissionais da unidade neonatal informados sobre o estoque do BLH para que as prescrições sejam viáveis. Ao prescrevermos leite de BLH para prematuros o padrão ouro é o leite de mãe de RNPT seguido pelo colostro, e em terceiro lugar leite escolhido segundo o valor calórico e se possível, segundo o valor protéico. A distribuição segue a prescrição médica com base no estado clínico e necessidades nutricionais da criança, levando em conta a via de administração e a presença ou a ausência da mãe. Quando a mãe do RN estiver presente na unidade neonatal, deve-se dar preferência ao LMO fresco (ordenha imediata) ou leite materno processado estocado (anterior ou posterior, dependendo da fase de evolução).

O leite de escolha para dieta enteral mínima é o da própria mãe cru ou pasteurizado, na falta deste, leite de BLH com baixo valor calórico (até 600 kcal/L); deve ser iniciado o mais precocemente possível através de gavagem. O aumento de volume se dará conforme a aceitação da criança (10 a 20mL/kg/d).

No período de estabilidade clínica, na falta do leite materno, prescreve-se leite de BLH com maior valor calórico (acima de 700 kcal/L) objetivando a oferta de 120 a 130 kcal/kg/dia e, se possível, conteúdo protéico de 2,8 a 3g/kg/d. Se o RN apresentar sucção fraca e não rítmica, na ausência da mãe faz-se estimulação oral digital e na presença da mãe, sucção da mama concomitante com o uso da sonda (translactação).

Ao redor da 32ª- 34ª semana de idade gestacional corrigida intensifica-se a sucção da mama com controle da produção do leite materno e diminuição paulatina do volume oferecido através da sonda. Em estudo recém publicado, recém-nascidos de muito baixo peso ao nascer, alimentados com leite de BLH selecionado, apresentaram em relação ao p50 um ganho ponderal médio diário de 15,8 g por dia; um aumento no comprimento de 1,02cm /semana e no perímetro cefálico de 0,76 cm/semana. Faz-se necessário o acompanhamento da curva de crescimento nesse momento, devido aos maiores gastos energéticos com a sucção no seio materno. Este é um momento crítico onde as variáveis de volume ofertado por sonda, produção de leite materno e ganho de peso vão determinar a retirada da sonda e o estabelecimento das mamadas no seio materno em livre demanda.

 

Formas de administração do LMO in natura ou Leite humano pasteurizado

Gavagem simples ou intermitente:é a forma mais freqüentemente utilizada para alimentar os RNPT ou recém-nascidos de baixo peso (RNBP), intervalos de 2 a 3h e através de sonda oro ou nasogástrica.

Gavagem contínua: administração com bomba de infusão. É utilizada em prematuros extremos com insu­ficiência respiratória importante, pós-operatório de cirurgia abdominal, refluxo gastroesofágico e resíduo gástrico persistente. A administração poderá ser por sonda oro ou nasogástrica não devendo o tempo de exposição do leite à temperatura ambiente exceder uma hora durante a sua administração.

Depto. Científico de Aleitamento Materno da SPSP


Translactação: é uma técnica criada pelo serviço de neonatologia do Instituto Materno-Infantil de Pernam­buco (IMIP) em julho de 1998. Essa técnica tem como objetivo realizar a transição da alimentação por sonda diretamente para o peito, em RNBP ou RNPT, cuja mãe mantém boa produção de leite. O sistema de translactação consiste em um recipiente contendo o leite (de preferência o da própria mãe e na sua falta o do BLH pasteurizado), colocado entre as mamas e conectado ao mamilo por meio de uma sonda. O RN ao sugar recebe o suplemento e continua a estimular a mama até sentir-se saciado.

 

Necessidades especiais na nutrição do RNPT
Não se pode negar a necessidade da complementação do leite materno para a nutrição de RNPT, uma vez que o leite de suas mães nem sempre supre o volume necessário e nem todos os serviços de neonatologia dispõem de BLH. Durante a internação podem ser adotadas estratégias alternativas, como o Método Canguru para aumentar a produção láctea das mães.

Depto. Científico de Aleitamento Materno da SPSP



Estudos mostram que ocorre uma deficiente mineralização óssea no RNPT com menos de 32 semanas gestacionais. A formação óssea pós-natal requer um aporte adequado de proteínas, cálcio (Ca) e fósforo (P). Para tanto o leite humano é o alimento ideal devido à sua melhor biodisponibilidade. Além disso, devem-se monitorizar os níveis de Ca, P e creatinina urinários a fim de se detectar precocemente aqueles RN em risco de Doença Metabólica Óssea e corrigir a necessidade dos nutrientes.

Na possibilidade de leite de BLH deve-se utilizar, idealmente, leite cuja doadora seja mãe de RNPT nas primeiras quatro semanas de lactação, para que o teor protéico seja mais próximo daquele necessário ao RNPT, ou leite da doadora de termo cuja ordenha é feita no final da mamada, pois contém um maior teor lipídico, uma maior oferta protéica, proporcionando melhor ganho ponderal e melhor absorção de Ca e P.
           
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Texto publicado pela SPSP em 06/09/2011