Como falar com as crianças sobre o coronavírus?

Em tempos de pandemia, são levantadas muitas questões sobre o que dizer ou não a uma criança acerca da Covid-19. É natural que surjam dúvidas e ansiedades sobre como abordar um capítulo tão triste da história, o qual não poderemos propositalmente “pular”, tal como fazemos quando queremos proteger os filhos de algo cruel como uma notícia da TV. Afinal, as restrições ao convívio social e até mesmo o comprometimento da saúde de amigos e parentes atingiram diretamente nossas crianças, tornando o assunto incontornável.
Pensei ser interessante contextualizar que os jovens dessa pandemia nasceram em um mundo em que ser feliz e ter qualidade de vida são imperativos que se aplicam à tarefa de tornar os filhos felizes, a qual muitos pais confundem com não frustrar as crianças e elas não aprenderem a tolerar frustrações, como se elas não pudessem suportar contrariedades e percalços inerentes à vida de qualquer ser humano.

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Desde a primeira semana de confinamento da pandemia, foi frequente ouvir nos grupos de WhatsApp de mães e pais de escolas particulares de São Paulo sobre a preocupação a respeito de como ficariam as aulas e o conteúdo que as crianças teriam que cumprir neste ano. Críticas à escola, discussões, ameaças de cancelamentos de matrícula, tudo isso na primeira semana. Quem protegeria as crianças de terem qualquer perda? Quem poderia salvar o ano letivo? De fato, se pensarmos na agenda lotada dessas crianças, parar parece uma tragédia, quase um crime.

Qual o impacto emocional para as crianças?

É evidente que toda essa situação preocupa muito e merece reflexão, porém tão importante quanto o comprometimento da normalidade do dia a dia escolar, é pensar em como essas crianças entenderão a gravidade do que acontece no mundo neste exato momento. Quais impactos emocionais estariam sentindo em suas vidas? Ouvindo os pais em desespero com questões escolares, eu me perguntava se a grande angústia deles, na verdade, não seria a de não poderem suportar esse acidente de percurso nos maiores planos que fizeram aos filhos? Ou por estarem extremamente preocupados com o que farão com seus filhos em casa? Ou ainda suportar lidar com o fato de que agora estamos todos sendo frustrados e mergulhados em uma situação de bastante descontrole que não sabemos como terminará? Esse último elemento que agrega imensa angústia a qualquer um de nós.
Na última semana, ouvi de uma paciente, preocupada a esse respeito e que perguntou ao filho, se ele pudesse estar em qualquer lugar do mundo, onde seria? Ficou tocada com a resposta: “No recreio da minha escola, com meus amigos”. A colocação desse menino me fez pensar que a grande perda para as crianças talvez seja a ausência do outro, do amigo, do abraço, da corrida no pátio, de jogar bola no recreio, da liberdade.
Ainda que a condição mais favorável das classes média e média alta permita aos pais proteger os filhos de boa parte dos sofrimentos derivados da vulnerabilidade econômica e social, invariavelmente sempre existirão dois incontornáveis inimigos: a doença e a morte. São vilões democráticos e que na pandemia chegaram sem pedir licença, atingindo todos os países do mundo de uma única vez. Essa é a notícia que teremos que dar aos nossos filhos e pacientes: estamos diante de algo imponderável, que não poderá ser censurado ou esquecido de forma deliberada, para que todos sigamos sem perdas, como se nada tivesse acontecido.

Esteja atento aos sinais de angústia e necessida de conversar

Se antigamente os velórios eram realizados em casa e as crianças eram parte do cenário inevitável e natural da morte, hoje muitas crianças só entram em contato com ela mais tarde na vida. O fato é que a pandemia chegou e subverterá justamente a forma como morremos e lidamos com a morte. É impossível poupar os jovens de tais notícias. Por outro lado, temos em nossas mãos uma grande oportunidade de observar como cada criança lidará com essa nova realidade. Será importante estarmos atentos aos sinais de angústia, aos sintomas e a necessidade de falar sobre a morte e a doença, que surgirão de qualquer forma, dependendo da faixa etária. Em crianças pequenas, por exemplo, a angústia em seu entorno, característica desse período, pode produzir retrocessos em habilidades consolidadas, como, por exemplo, voltar a fazer xixi na cama e pedir a mamadeira, fatos que podem ser a expressão de toda tensão familiar.
Nesse período, podem aparecer também angústias difusas e escamoteadas e que ganham outras facetas, outros nomes: o medo de ficar sozinho, a necessidade de ficar colado ao pai e/ou a mãe o dia todo, pavor em sair na rua, medo de dormir sozinho, são exemplos que qualquer profissional que cuida de crianças escuta cotidianamente, mas que nas últimas semanas vêm se intensificando. Nesse momento, penso ser importante não silenciar ou distrair as crianças e os jovens, mas ter a coragem e dignidade de atravessar com eles período tão triste.

Na hora de conversar, considere a idade da criança

Evidente que cada criança, dependendo de sua idade, deve ser exposta às notícias de acordo com a possibilidade de compreensão e elaboração da angústia. Com crianças bem pequenas não devemos apresentar as agruras da pandemia, como caixões em fila ou coisas do tipo, e mesmo com as mais velhas devemos preservar certas imagens e situações. Por outro lado, diante das constatações e perguntas das crianças mais velhas sobre desfechos piores, não devemos nos esquivar em dar esse triste dado de realidade. Essa será uma ocasião para mostrarmos a elas como lidar com tanta dor e incerteza e manter a esperança, tarefa que será individual e intransferível. Lidar com tais angústias precocemente nos parece cruel, porém essa experiência pode se traduzir em importante ferramenta para o enfrentamento da frustração e da adversidade. Teremos a oportunidade de refletir sobre como a felicidade é uma aspiração que, em qualquer biografia, estará mesclada à dor e ao sofrimento, que tudo isso faz parte da vida, que capítulos tristes, tal como nas histórias infantis, podem ser parte de uma vida feliz e, que a tristeza e a alegria coexistem o tempo todo. Tirar lições e conclusões sobre os impactos dessa pandemia é impossível, pois ela ainda está viva e faz parte do nosso presente. O que sabemos por ora é que ela nos trouxe medo extremo, uma impotência maior ainda e uma incerteza que por alguns momentos parece engolir toda esperança. Ora, se não sabemos como lidar com todos esses sentimentos e fatos, talvez seja melhor usarmos esse tempo para refletir, observar, aprender, ao invés de, como seres pós-modernos que somos, sairmos concluindo ou cobrando coisas, seja da escola, de nossos filhos e até de nós mesmos. Graças à pandemia, ganhamos uma oportunidade sem precedentes na história recente de ficarmos juntos dos nossos filhos por longos períodos, suportando dividir a dor, o receio, o tédio e os momentos de alegria. Nossas crianças conhecerão novos capítulos felizes se soubermos aguardar, refletir, suportar a angústia, conversar e preservar nossos vínculos solidários. A grande questão é: essas são tarefas árduas para todos nós, seres individualistas e acostumados à velocidade da luz e à felicidade ao alcance de uma curtida.

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Relator
Dra. Flavia Schimith Escrivão
Departamento Científico de Saúde Mental da Sociedade de Pediatria de São Paulo