Diagnóstico amigo da criança

Relatora: Dra. Magda Carneiro-Sampaio
Profª Titular do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da USP e Presidente do Conselho Diretor do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da FMUSP.

 Não há dúvidas de que os avanços médico-tecnológicos das últimas décadas vêm proporcionando uma verdadeira revolução na área do diagnóstico. No campo da imagem, a tomografia computadorizada (TC) e a ressonância nuclear magnética (RM) oferecem verdadeiras “biópsias”, tamanha é a riqueza de detalhes mostrada nas lesões. Na área laboratorial, as técnicas genético-moleculares, por exemplo, detectam, a preços cada dia mais baixos, alterações gênicas que permitem diagnósticos precisos e aconselhamento familiar seguro. E os exemplos dos avanços são cada vez mais numerosos, surpreendentes e de extrema utilidade.

Se por um lado, é preciso garantir à criança e ao adolescente o acesso pleno aos métodos diagnósticos mais modernos, por outro lado, é igualmente necessário protegê-los dos riscos decorrentes desses procedimentos e, principalmente, dos abusos da indicação pouco criteriosa de exames complementares em nossos dias. Além do elevado custo financeiro, os exames complementares podem ter um impacto negativo sobre o paciente, implicando em sofrimento e riscos para a saúde, riscos que são obviamente maiores nas crianças de baixa idade e debilitadas por doenças graves.

Preocupados com o impacto negativo dos procedimentos diagnósticos, um grupo de médicos e enfermeiras do Instituto da Criança (ICr), apoiados por especialistas da Faculdade de Direito da mesma Universidade, decidiram propor (e pôr em prática) um programa denominado Diagnóstico Amigo da Criança, cujo objetivo principal é o de racionalizar o emprego dos métodos diagnósticos (de imagem, laboratório clínico e testes funcionais) na prática pediátrica, para que tragam o máximo de benefícios, o mínimo de riscos atuais e futuros, e que poupem a criança e o adolescente de sofrimento físico e agravos psicológicos evitáveis.

 

Três grandes pilares

O Programa se apoia em três grandes pilares. O primeiro é a redução da quantidade de sangue coletada para as diferentes análises laboratoriais, garantindo-se, por outro lado, a acurácia da informação obtida no exame. Sabe-se que a coleta de sangue para exames representa hoje a principal causa de transfusão de sangue em crianças de baixa idade internadas em hospitais. No ICr, estão sendo implantados micrométodos, que reduzirão em até 75% a quantidade de sangue a ser coletada para as análises laboratoriais mais solicitadas, tais como hemograma, gasometria, íons, coagulograma e estudos microbiológicos e imunológicos.

O segundo pilar é a redução da exposição da criança à radiação ionizante, representada na prática pediátrica sobretudo pelo raio X. A radiação é chamada de ionizante quando produz íons, radicais e elétrons livres na matéria com a qual interage, o que mostra seu potencial para determinar alterações no tecido. Maior risco de desenvolver câncer na adolescência ou em adultos tem sido referido de forma consistente quando houve exposição à radiação ionizante, particularmente por TC durante a infância. Nas radiografias convencionais e nas contrastadas, assim como na TC, os princípios físicos do raio X são usados para gerar as imagens, sendo que a quantidade de radiação é maior na TC (radiografia de tórax – 15 mrads, TC de tórax – 4.000 mrads!). Por sua vez, na ultrassonografia (USG), utiliza-se o som de alta frequência para gerar imagens em tempo real e as suas aplicações são cada vez mais amplas, incluindo a exploração do coração (ecocardiografia) e do sistema nervoso central no lactente ainda com as fontanelas abertas. A RM também não usa radiação ionizante, empregando um campo magnético e ondas de radiofrequência para gerar imagens. A USG deve, assim, ser o método de eleição para o diagnóstico por imagem em Pediatria.

Como segunda opção, a ressonância magnética tem sido cada vez mais indicada em crianças, em substituição à tomografia. Ressalte-se, finalmente, que o ICr passou a contar neste ano com um tomógrafo que tem o recurso de fornecer imagens detalhadas com quantidades expressivamente menores de radiação ionizante, quando comparado aos aparelhos tradicionais.

A terceira vertente do Programa visa a redução da necessidade de anestesia e mesmo de sedação para a realização de exames de imagem e funcionais (eletroencefalografia, por exemplo) em crianças em idade pré-escolar e escolar. Para tal, é necessária uma série de medidas voltadas para o acolhimento e para o bem-estar da criança, que permita que a mesma colabore na realização do procedimento. O bom treinamento de todos os membros da equipe do diagnóstico, assim como um ambiente físico favorável, são fundamentais para essa meta.

 

Resgatar o papel do médico

Na prática médica diária, os exames (chamados de COMPLEMENTARES) vêm substituindo cada vez mais a anamnese e o exame físico, conceito e prática completamente  equivocados e que já ”contaminam” a cultura da própria sociedade contemporânea, que os “exige” cada vez mais nos atendimentos médicos.

Instala-se assim um ciclo vicioso: menos raciocínio clínico, mais exames, menor vínculo médico-paciente, menos confiança na pessoa do médico, mais exames, mais custos… O grande intuito do nosso Programa é resgatar o papel central e insubstituível do médico bem formado, com raciocínio clínico inteligente para o diagnóstico e tratamento adequados ao paciente. Na verdade, buscar o maior número possível de dados clínicos e solicitar apenas os exames indispensáveis e cuja informação contribuirá, de fato, para a elucidação do diagnóstico, representa na prática o verdadeiro “diagnóstico amigo da criança”.

 

Texto publicado em 19 de agosto de 2013.

Texto original publicado no Boletim “Pediatra Informe-se” Ano XXIX • Número 169 • Maio/Junho de 2013