Morte súbita na infância

Dra. Andréa de Melo Alexandre Fraga *

Introdução
Historicamente, os relatos de óbitos de crianças sugestivos de Morte Súbita datam desde a Antigüidade sendo também descritas algumas citações bíblicas.

A morte repentina e inesperada de crianças e adolescentes é um evento raro, mas quando acontece, é sempre trágico. Por tratar-se de crianças previamente hígidas, muita indignação e culpa em relação às circunstâncias do óbito cercam os pais ou cuidadores destas crianças. É necessário então que os profissionais, tanto na esfera da saúde quanto na esfera legal estejam cientes e também familiarizados com os recentes estudos sobre Morte Súbita a fim de se atenuar as conseqüências psicológicas dramáticas que certamente envolvem estas pessoas1,2.

Muito se tem estudado principalmente nos últimos 20 anos em relação à Morte Súbita, sendo em alguns países desenvolvidos encarado até como problema se saúde pública, pois trata-se de importante causa de morte.

Definição
Antes de qualquer definição propriamente dita, alguns conceitos semânticos devem ser bem estabelecidos, pois como a maioria dos estudos realizados são apresentados na língua Inglesa, estamos sujeitos a algumas interpretações errôneas principalmente em relação a siglas. Portanto, na língua inglesa, “sudden infant death syndrome” (SIDS), onde “infant” é definido para crianças menores de um ano, aplica-se para o português como Síndrome da Morte Súbita do Lactente (SMSL).

Quando o evento ocorre em crianças maiores de 1 ano, este está inserido na “sudden unexplained death in childhood” (SUDC) e, quando associado à epilepsia relaciona-se à “sudden unexplained death in epilepsy” (SUDEP)3,4.

A definição inicial para Síndrome da Morte Súbita do lactente foi elaborada em 1969 na Segunda Conferência sobre Causas de Morte Súbita quando se estabeleceu que “a morte súbita de qualquer lactente ou criança jovem, inesperada pela história clínica, acompanhada de exame pós morten completo não elucidasse a causa do óbito” seria considerado SMSL. Este conceito foi se aprimorando no decorrer dos anos após vários encontros de especialistas da área e amplas e fervorosas discussões entre as décadas de 1980 e 905. Em janeiro de 2004, foi realizado na cidade de San Diego na Califórnia uma reunião multidisciplinar entre vários especialistas em pediatria, patologia pediátrica e patologia forense dos Estados Unidos, Europa, Austrália e Ásia. Neste encontro foram realizadas algumas adaptações na definição usada, além do estabelecimento de vários critérios de inclusão e exclusão a fim de se refinar o diagnóstico, monitorizando-se assim de forma mais correta, a epidemiologia da SMSL. Portanto, define-se atualmente a SMSL como: morte súbita de uma criança menor de 1 ano de idade que permanece inexplicada após minuciosa investigação, incluindo-se revisão da história clínica e circunstâncias da morte, além de autópsia completa e testes auxiliares6.
Apesar de ocorrerem em proporções muito menores, são observados óbitos de crianças maiores de 1 ano de idade nas mesmas características da SMSL. Portanto definiram-se estes casos como: Sudden unexplained death in childhood (SUDC), ainda sem tradução na literatura para a língua portuguesa7. Para a população epilética em geral, incluídas também as crianças, quando ocorrem óbitos inexplicáveis, estes são definidos como: Sudden unexplained death in epilepsy (SUDEP)4.

Classificação
Atualmente classifica-se a Síndrome da Morte Súbita do Lactente em três categorias: I, II e a SMSL não classificada. A categoria I subdivide-se em IA e IB. Esta classificação baseia-se em critérios clínicos, circunstâncias do óbito e dados da autópsia6.

Categoria IA: Características clássicas de SMSL completamente documentadas.
Dados clínicos:

  1. Idade entre 21 dias e 9 meses;
  2. História clínica normal, incluindo-se gestação a termo (> ou igual a 37 semanas);
  3. Crescimento e desenvolvimento normais;
  4. Ausência de óbitos similares entre parentes.

Circunstâncias do óbito:

  1. A investigação do local onde ocorreu o evento não pode esclarecer a causa do óbito;
  2. Criança foi encontrada em um ambiente de sono seguro, sem evidências de morte acidental.

Dados da autópsia:

  1. Ausência de achados patológicos potencialmente fatais. Infiltrados inflamatórios discretos no sistema respiratório são aceitáveis.
  2. Ausência de evidência de trauma, abuso, negligência ou lesões não intencionais.
  3. Ausência de evidência de estresse tímico.
  4. Resultados negativos de exames toxicológicos, microbiológicos, radiológicos e screening metabólico.

Categoria IB: Características clássicas de SMSL, mas não completamente documentadas.
Inclui todos os critérios da categoria IA exceto:

  1. Investigação do local onde ocorreu o evento e/ou
  2. Realização de exames toxicológicos, microbiológicos, radiológicos e screening metabólico.

Categoria II: Inclui os casos que preenchem os critérios da categoria I, exceto se existirem um ou mais dos critérios seguintes.
Dados clínicos:

  1. Idade < 21 dias ou > 9 meses (limite até < 1 ano);
  2. Presença de óbitos similares entre parentes;
  3. Presença de alguma morbidade peri ou neonatal, mas que tenha se resolvido até o evento.

Circuntâncias do óbito:

  1. Indícios de asfixia mecânica ou sufocação causada por rolamento de um adulto sobre a criança, porém não conclusivos.

Dados da autópsia:

  1. Sinais de crescimento e desenvolvimento anormais, mas que não tenham contribuído com o evento.
  2. Infiltrados inflamatórios mais intensos ou outras anormalidades, mas que não sejam suficientes para determinar a causa do óbito.

SMSL não classificada: Esta categoria inclui óbitos de crianças que não preenchem totalmente os critérios da categoria I ou II, mas são fortemente sugestivos. Incluem-se também os casos onde a autópsia não foi realizada.

Epidemiologia
Nos países desenvolvidos a Síndrome da Morte Súbita do Lactente está entre as primeiras causas de mortalidade infantil pós-neonatal, sendo que nos EUA ocorrem 56 casos em 100.000 óbitos ao ano. Este valor é 37 vezes menor (1,5/100.000) quando relacionados ao óbito por SUDC7.

A rígida classificação da SMSL associada ao fato da necrópsia não ser uma conduta obrigatória em nosso país, dificulta muito seu reconhecimento, fazendo com que a SMSL nem conste nas estatísticas oficiais brasileiras. Porém, um estudo realizado no Rio Grande do Sul demonstrou a incidência de suspeita da SMSL de 1,75/1.000 no município de Passo Fundo, em 20038. Não existem dados nacionais em relação à SUDC.
Dados demográficos da SMSL:

  1. Predomínio no sexo masculino;
  2. Pico de incidência entre 2 e 4 meses de idade;
  3. Predomínio entre afro-americanos e indígenas;
  4. Maior incidência no inverno.

Excetuando-se a faixa etária, os dados demográficos da SMSL também se aplicam à SUDC.

Fatores de risco
Muito bem estabelecido na literatura como fator de risco é o hábito de dormir em decúbito ventral e a associação à exposição ao tabaco durante a gestação ou após o nascimento. Dados estatísticos mostram redução significante de óbitos inesperados após introdução de campanhas educativas relacionadas à posição de dormir e exposição ao tabaco9.

O hábito de dividir o leito com várias pessoas e dormir sobre superfícies macias, também aumenta o risco de óbitos inesperados independentemente da faixa etária10,11.

Crianças pequenas para a idade gestacional, baixo peso ao nascimento e ganho pondero-estatural não adequado estão entre as de risco para SMSL e SUDC12.

Mecanismo de óbito
A elucidação da causa de um evento tão trágico como a morte súbita de uma criança previamente saudável, pede resposta rápida no intuito de no mínimo diminuir a culpa inerente às famílias que perderam seus filhos. Apesar dos crescentes e complexos estudos na área, o verdadeiro mecanismo de morte da SMSL ainda é desconhecido. Porém, a grande maioria da literatura sugere que essas crianças devem ter sofrido hipóxia aguda, senão crônica antes de morrerem13.

Apesar dos esforços concentrados nessa área de pesquisa, a SMSL ainda permanece como diagnóstico de exclusão, sendo muitas vezes impossível diferenciar se o mecanismo de sufocação foi natural, acidental ou provocado através do exame pós morten. Nesses casos, a reavaliação das circunstâncias do óbito são fundamentais14.

Em relação à SUDC estudos recentes alertam sobre a possibilidade de alteração prévia no hipocampo como fator causal, porém mais estudos ainda são necessários para a confirmação etiológica15.

Achados anatomopatológicos
Por definição, as alterações macro e microscópicas da SMSL são muito discretas. Petéquias intra-torácicas são freqüentes, mas não patognomônicas de SMSL5.

A presença de hemorragia pulmonar também não pode ser considerada marcador para SMSL, pois aparece em seus vários graus, tanto em crianças vítimas de SMSL, quanto em outros mecanismos de sufocação14.

Atualmente nas análises histopatológicas buscam-se marcadores de hipóxia. A elevação persistente da hemoglobina fetal pode ser considerada como marcador de hipóxia prévia, porém os estudos ainda são muito controversos na aplicabilidade deste critério para SMSL16,17.

A SUDC por ser muito mais infreqüente e mais recentemente estudada, apresenta em relação à SMSL poucos estudos em todas as esferas. Porém foi observado que as crianças com idade maior que 1 ano, apresentavam menos hemorragia intra-pulmonar comparadas aos lactentes e também foi observado alterações de assimetria hipocampal nesses pacientes. Estes estudos apesar de bem controlados ainda merecem comprovação, pois a amostra estudada foi pequena. Outra limitação em relação a estes estudos é em relação ao custo. As análises biológicas são extremamente elaboradas e complexas além da necessidade do envolvimento de vários profissionais de diferentes especialidades médicas7.

Conclusão
A síndrome da morte súbita do lactente é um problema de saúde pública nos países desenvolvidos, porém pouco dimensionado nos países em desenvolvimento. O estabelecimento de protocolos de estudo e sua uniformização baseada na classificação mais atual de SMSL e de SUDC são fundamentais para os avanços em relação à quantificação do problema em nosso meio.

As medidas de saúde pública, tais como estimular as gestantes a freqüentar as consultas de pré-natal e posteriormente de puericultura, controle do tabaco durante a gestação e após o parto, orientação de hábitos saudáveis de sono para as crianças, incentivo ao aleitamento materno, são extremamente importantes não apenas para prevenir a morte súbita de crianças como para promover a saúde de nossa população.

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Autora: Dra. Andréa de Melo Alexandre Fraga
* Médica pediatra assistente da Unidade de Emergência Referenciada do Hospital de Clínicas da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, Campinas, SP. Mestre em Saúde da Criança e do Adolescente. Fellow em pesquisa clínica na Universidade da Califórnia, San Diego. Membro do Departamento de Emergências da SPSP

Texto recebido em 30/12/2007.
Departamento Científico de Emergências da SPSP – gestão 2007-2009 (Presidente: Dra. Adriana Vada)