O pediatra e a detecção e manejo das dislipidemias

Com a modificação dos hábitos nas últimas décadas, o aumento da urbanização, a vida mais sedentária e mudança no padrão alimentar, um risco maior de doenças decorrentes das dislipidemias pode acontecer. Estudos populacionais mostram que as doenças cardiovasculares são responsáveis por aumento da morbi-mortalidade em todo o mundo.

Na faixa etária pediátrica a prevalência de dislipidemia vem aumentando assustadoramente. Estudos mostram que o desenvolvimento da aterosclerose já se inicia na infância e está fortemente relacionada com dislipidemias. Este fenômeno foi demonstrado em dois estudos populacionais que mostraram, através de autopsias em crianças e adolescentes que morreram acidentalmente, alterações da camada íntima das artérias destes indivíduos com presença de estrias gordurosas e placas fibrosas.1-2

A melhor forma de se controlar a formação e progressão das placas de ateroma é através da adequação do colesterol sérico. Já na infância o controle dos níveis de colesterol ajuda a diminuir a formação de aterosclerose e a prevenir doenças cardiovasculares futuras.

A Sociedade Brasileira de Cardiologia propõe os seguintes valores lipídicos para pacientes pediátrico na I Diretriz de prevenção da aterosclerose na infância e adolescência.3

Lípides Desejável Limítrofe Aumentado
Colesterol total (mg/dL) <150 150-169 ≥170
LDL (mg/dL) <100 100-129 ≥130
HDL (mg/dL) ≥45    
Triglicérides (mg/dL) <100 100-129 ≥130

 

Em julho de 2008, a Academia Americana de Pediatria4 propôs os seguintes cuidados para o controle das dislipidemias na infância:

  1. Medidas populacionais incentivando dieta saudável com redução de gorduras já a partir dos 2 anos de idade.
  2. Para crianças e adolescentes com alto risco de doença cardiovascular e com altas concentrações de LDL, iniciar dieta balanceada com baixa ingestão de gorduras (em torno de 30% do total de calorias por dia, sendo <7% de gordura saturada e colesterol até 200 mg/dia), limite de uso de gordura trans (<1% do total de calorias diárias) e estímulo à atividade física.
  3. Dosar colesterol total/frações e triglicérides em todas as crianças e adolescentes com história familiar positiva de dislipidemia ou doença cardiovascular precoce (<55 anos no homem e <65 anos na mulher), quando a história familiar não é conhecida, em pacientes com sobrepeso, obesidade, hipertensão arterial sistêmica, diabetes mellitus e em tabagistas.
  4. Nestes pacientes (do item 3) as dosagens de colesterol devem ser realizadas a partir dos 2 anos de idade e não devem ser postergadas para depois dos 10 anos.
  5. Se os valores estiverem dentro dos valores de referência para a idade, pode-se repetir a dosagem após 3 a 5 anos.
  6. Para pacientes que estão acima do peso e que apresentam aumento de triglicérides e diminuição de HDL, a perda de peso é o primeiro passo para o tratamento, com dieta equilibrada e aumento da atividade física.
  7. O uso de medicações em pacientes acima de 8 anos (quelantes de sais biliares e estatinas) deve ser considerado quando:
    • LDL ≥ 190 mg/dL
    • LDL ≥ 160 + obesidade ou HAS ou tabagismo ou história familiar de doença cardiovascular precoce e dislipidemia.
    • LDL ≥ 130 + diabetes mellitus.

O alvo inicial a ser alcançado é LDL < 160 mg/dL. Porém em caso de história familiar de doença cardiovascular precoce ou a presença de outros fatores de risco como obesidade, síndrome metabólica e diabetes mellitus, níveis menores que 130 ou até 110 mg/dL devem ser alcançados.

Devemos lembrar que os quelantes de sais biliares são difíceis de ingerir (apresentação em pó que deve ser diluída em líquidos) e podem levar a desconforto abdominal importante.

Alguns estudos clínicos realizados em crianças e adolescentes mostram que as estatinas reduzem a espessura da camada íntima da carótida. Por outro lado, as estatinas podem levar ao aumento de enzimas hepáticas, aumento do CPK e rabdomiólise. A Administração de Drogas e Alimentos dos Estados Unidos (FDA) aprovou o uso de uma estatina, a pravastatina, em crianças acima de oito anos somente para pacientes com hipercolesterolemia familiar.

O uso de fibratos ainda necessita de mais estudos na faixa etária pediátrica.

Portanto devemos ressaltar que, embora novas medicações estejam sendo utilizadas no tratamento de dislipidemias, seu uso ainda está restrito a algumas situações especiais, não se recomendando sua prescrição de forma descriminada.

A prevenção com dieta adequada, estímulo à atividade física e perda de peso em pacientes obesos, bem como o diagnóstico precoce da dislipidemia é, sem dúvida, a grande missão do pediatra nos dias atuais.

Autores:
Louise Cominato Kanashiro
Membro do Departamento de Endocrinologia da Sociedade de Pediatria de São Paulo – gestão 2007-2009; Médica Assistente da Unidade de Endocrinologia Pediátrica do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da Faculdade de medicina da Universidade de São Paulo, SP.
Hilton Kuperman
Presidente do Departamento de Endocrinologia da Sociedade de Pediatria de São Paulo – gestão 2007-2009; Médico Assistente Assistente da Unidade de Endocrinologia Pediátrica do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da Faculdade de medicina da Universidade de São Paulo, SP.

Referências bibliográficas:

  • Webber LS, Osganian V, Luepker RV, et al. Cardiovascular risk factors among third grade children in four regions of the United States. The CATCH Study: Child and Adolescent Trial for Cardiovascular Health. Am J Epidemiol. 1995;141(5):428–39.
  • Berenson GS, Srinivasan SR, Bao W, Newman WP III, Tracy RE, Wattigney WA. Association between multiple cardiovascular risk factors and the early development of atherosclerosis. Bogalusa Heart Study. N Engl J Med. 1998;338(23):1650–6.
  • Sociedade Brasileira de Cardiologia. Departamento de Aterosclerose et al. I Diretriz de Prevenção da Aterosclerose na Infância e na Adolescência. Arq. Bras. Cardiol. 2005;85(suppl. 6):3-36.
  • Stephen R. Daniels, Frank R. Greer and and the Committee on Nutrition. Lipid screening and cardiovascular health in childhood. Pediatrics 2008;122;198-208.
  • de Jongh S, Ose L, Szamosi T, et al. Efficacy and safety of statin therapy in children with familial hypercholesterolemia a randomized, doublé-blind, placebo-controlled trial with sinvastatin. Circulation. 2002;106(17):2231-7.
  • Passarelli M, Nakandakare ER. Dislipidemias na infância e na adolescência. In: Setian N, Damiani D, Manna TD, Dichtchekenian V, Cardoso AL. Obesidade na criança e no adolescente – Buscando caminhos desde o nascimento. São Paulo: Editora Roca, 2007, v.1, p.11-124.

Texto recebido em 11/08/2008.