Por que razões a infecção pelo SARS-CoV-2 acomete menos crianças e adolescentes?

SPSP – Sociedade de Pediatria de São Paulo
Texto divulgado em 26/05/2020


Relatora: Magda Sampaio
Departamento Científico de Alergia e Imunologia da Sociedade de Pediatria de São Paulo

 

Diferente da maior parte das viroses respiratórias, na presente pandemia, crianças e adolescentes saudáveis apresentam reduzida frequência de manifestações graves e baixíssima taxa de mortalidade. Estudos em diferentes países mostraram que a faixa etária pediátrica representa em torno de 1% dos casos identificados em hospitais, embora um estudo chinês com grande número de doentes e de contactantes tenha demonstrado taxa de infecção em crianças abaixo de 10 anos equivalente à da população como um todo, reforçando os achados de que poucas crianças desenvolvem sintomatologia grave.

As razões pelas quais as crianças na sua maior parte não desenvolvem quadros graves ainda não foram completamente esclarecidas. Uma hipótese levantada é que a criança poderia apresentar a ACE2 ou ECA2 (enzima conversora de Angiotensina-2) – principal ligante do SARS-Cov-2 em células humanas – em densidade ou configuração diferentes. Outra possibilidade é que pudesse ter menor capacidade de se ligar ao vírus, ou ainda que a resposta das células alveolares à ECA2 seja menos lesiva, ou seja, que a resposta intracelular induzida pela ECA2 seja diferente na criança quando comparada ao adulto, em especial ao idoso.

Outra hipótese estaria relacionada com a própria imaturidade imunológica, tanto da resposta inata (sobretudo a reação inflamatória) como da adaptativa (anticorpos e linfócitos T). Como em outras infecções, as lesões tissulares não resultam apenas da ação direta do patógeno, mas também da dos vários elementos da resposta imune na tentativa de eliminar o agente invasor. A resposta imune, por sua vez, depende da “história” imunológica de cada pessoa, onde infecções prévias e o estado de maturidade e de ativação do sistema imune no momento da nova infecção podem juntos determinar o curso diferente da doença em diferentes indivíduos – nesse caso, certamente faixa etária e comorbidades podem ter grande influência. Considerando o possível papel dos anticorpos, infere-se que adultos tenham moléculas com reatividade cruzada ao SARS-Cov-2, mesmo sem atividade neutralizante, adquiridas como resposta a viroses anteriores. Esses anticorpos podem mediar uma intensa atividade inflamatória, pela deposição local de imunecomplexos e ligação às células apresentadoras de antígenos do pulmão.

Tem-se demonstrado que adultos com quadros graves de COVID-19 apresentam níveis elevados de citocinas pró-inflamatórias e quimiocinas – uma verdadeira “tempestade” de citocinas – que podem estar associados com o quadro classificado como septicemia viral assim como às lesões de tecidos e órgãos, à coagulação intravascular disseminada e a disfunção e falência de múltiplos órgãos. Outra hipótese seria que a criança saudável seja menos propícia a desenvolver fenômenos associados com imunodesregulação. Entretanto, a partir de abril começaram a ser descritos em diversos países casos graves isolados em crianças que têm sido classificados como Síndrome da Inflamação Multissistêmica, vários com achados Kawasaki-like, sendo a maioria não associada com sintomas gripais e alguns precedidos por manifestações gastrointestinais. Esses casos têm trazido grande preocupação e estão sendo explorados em diversos centros.

Outra característica da COVID-19 pediátrica refere-se à raridade da linfocitopenia, presente em quase todos os adultos com quadros graves. Como os números de linfócitos totais e suas principais subpopulações são naturalmente elevados em lactentes e pré-escolares sadios, essa observação precisa ser melhor compreendida, não sendo ainda possível afirmar que a manutenção de um bom número de linfócitos esteja associada à menor gravidade da doença na criança.

As hipóteses levantadas não se excluem mutuamente e certamente o melhor entendimento da COVID-19 pediátrica pode contribuir para a compreensão da fisiopatologia da infecção e eventualmente de fatores genéticos associados a diferentes evoluções clínicas.

 


Referência

  1. Palmeira P, Barbuto JA, Silva CA, Carneiro-Sampaio M. Why is SARS-CoV-2 infection milder among children? Clinics (Sao Paulo). 2020;75:e1947.