“Quem dá o tapa esquece com facilidade, quem leva nunca esquece”

“Quem dá o tapa esquece com facilidade, quem leva nunca esquece”

Três recados para lembrar o Dia da Consciência Negra – 20 de novembro

O antigo ditado popular, que dá título a este artigo, auxilia a abordar o tema preconceito racial de forma adequada: quem não tem a pele preta, só pode falar sobre o tema, porque está de fora; quem tem a pele escura pode falar do assunto, porque o experimenta na pele e, especialmente, debaixo dela.

Escrevo, então, sob a perspectiva do primeiro grupo citado. Comento, fazendo uma análise, fruto de leitura, observação, reflexão. Começo enfatizando que todo ser humano tem potencial para o preconceito, uma vez que ao se deparar com um fato, o interpreta sob uma lente própria, calcada na sua história de vida, na sua cultura, no seu país, no local onde reside, nas condições sociais e políticas vigentes, enfim, é sob um ponto de vista – o seu. No entanto, a mesmo fato pode ser visto de outros pontos de observação – o ponto de vista de onde está cada observador, com a lente pessoal de cada um. Tem razão Leonardo Boff quando diz que “um ponto de vista é a vista a partir de um ponto”.

1º Recado: temos que ser vigilantes para não cair na armadilha do preconceito, que muitas vezes nos pega despercebidos. Desde a Abolição (1988) muito pouco tempo se passou até aqui. Convivemos com inúmeras consequências desse fato histórico e, sub-repticiamente, repetimos no falar, no comportamento, nas relações interpessoais, na mídia, nas piadas, nas estruturas institucionais, as mazelas desse tempo. Por isso, embora a história já tenha acabado, há herdeiros hoje, após cinco gerações, que experimentam sob a pele a mesma dor dos que foram escravizados (Lembrete óbvio: escravo não é uma condição natural, nem normal. A África não é o lugar onde moravam os escravos que poderiam ser buscados lá). Há uma dívida sim, histórica a ser resgatada, no aqui e agora. Além do simbolismo que as políticas afirmativas desempenham, elas também cumprem a busca da equidade, pressuposto básico para o tratamento digno devido a qualquer pessoa. É uma questão de justiça.

O preconceito é um fenômeno passional, movido por inúmeros fatores, muitas vezes não percebidos pelo indivíduo (fato que não o exime de culpa) que faz diminuir a capacidade de conviver, de refletir, de trazer novidade, de partilhar.

O preconceito empobrece a vida.

O ponto fulcral do preconceito é que ele desqualifica o outro, ao classificá-lo como ser de menor valia, inferior. Nessa assimetria, o outro deixa de ser pessoa e passa a ser “coisa” – objeto de manipulação ou de descarte. A pessoa preconceituosa acredita ser o único tipo válido de ser humano e relaciona-se com o outro como se ele fosse algo menor. Os motivos para esse comportamento abrangem um leque grande de opções: o dinheiro acumulado, a cor da pele, o nível de escolaridade, a religião professada, o sotaque que ostenta, o time para o qual torce etc.

Mário Sergio Cortella faz um comentário interessante em seu livro Ser Humano – é Ser – Junto: “O que são os outros para nós mesmos? O mesmo que nós somos para os outros, ou seja, outros”. Todos somos o um e, também, o outro.

Paulo Freire, em seu livro Pedagogia do Oprimido, diz: “O preconceito torna vítima tanto aquele que sofre quanto o autor da ação. Porque se o preconceito humilha a vítima, ele diminui a dignidade do agressor”.

2º Recado: A linha que separa o preconceito da discriminação é estreita, por isso cabe vigilância por parte de todos. O combate ao preconceito precisa se dar em várias frentes: na autoavaliação de cada um, na escola, na família, nas instituições sociais, na construção de leis e punições adequadas aos infratores, na política. O preconceito pode ser superado; erradicado, provavelmente, não.

O preconceito é uma forma de intolerância, que não admite a diversidade; no entanto, beleza e diversidade são inseparáveis. A intolerância abre as portas do confronto e cerra as portas do diálogo. A intolerância ergue muros, o diálogo constrói pontes. A intolerância afasta, o diálogo aproxima.

O preconceito é feio. É fratricida, matando, às vezes sem derramar sangue, em outras tantas, vertendo-o.

3º Recado: “Ética é a vida boa para todas as pessoas, em instituições justas”, citando Paul Ricoeur. Cito a seguir trecho do livro do Cortella, antes referido: “O que é vida boa? É aquela que o indivíduo não é humilhado pela falta de trabalho digno, não é ofendido pela ausência de lazer sadio, não é vitimado pela falta de moradia adequada, não é atingido pela falta de comida, de escolaridade aceitável, de religiosidade livre, de sexualidade autônoma. Isso é vida boa. E o que são “Instituições justas? São as que conseguem garantir vida boa para todas as pessoas. Só assim, a escola, a família, o poder público, a mídia, a religião, a empresa, etc., poderão se denominar justos”.

Vida boa para todos e todas, de todas as cores, de todas as crenças e ideologias. Basta ser humano para merecê-la. Aos intolerantes, entretanto, fico com Karl Popper: “Devemos, então, nos reservar, em nome da tolerância, o direito de não tolerar o intolerante” (A sociedade aberta e seus inimigos).

 

Relator:
Fernando MF Oliveira
Coordenador do Blog Pediatra Orienta da SPSP