Triagem neonatal para Fibrose Cística

A Triagem Neonatal para Fibrose Cística (TNFC) é uma ação preventiva, que possibilita o diagnóstico, o acesso ao programa estadual de medicamentos e o aconselhamento genético. Além disto, a TNFC quando associada ao tratamento precoce reduz as lesões pulmonares na infância, a carga de cuidados para a família e pode melhorar a sobrevida. A TNFC tem efeito benéfico no estado nutricional, com melhora no crescimento, peso e estatura, e pode prevenir deficiências de vitaminas lipossolúveis e má nutrição protéica. O diagnóstico precoce acarreta menos stresse à família comparado ao diagnóstico tardio. É ainda, socialmente justa, pois fornece a mesma condição de diagnóstico para toda população de recém-nascidos. Os efeitos da TNFC tem sido extensivamente estudados e debatidos, e as evidências disponíveis a recomendam tanto pelos benefícios clínicos quanto econômicos.

A Fibrose Cística (FC) é uma doença classicamente descrita como prevalente na população caucasiana, porém ocorre em todas as etnias, é ainda não curável, mas a melhora do tratamento e o diagnóstico oportuno têm melhorado significativamente a sobrevida. Sua incidência é variável, sendo de um em 2000 recém-nascidos (RN) em nortes europeus, um em 9.000 em hispânicos, um em 17.000 em afro-americanos. No Brasil, pela extensão continental e diferentes miscigenações regionais, sua incidência poderá ser de um em 2.500 RN vivos ou como observado nos estados de Santa Catarina, Paraná e Minas gerais através da TNFC, um em 8.000 a 10.000 RN vivos. A TNFC pode identificar cerca de 90 a 95% dos casos da doença. Em São Paulo, num estudo piloto realizado para a implantação da triagem neonatal em nosso meio, foi 1: 8.403 nascidos vivos.

A TNFC tem danos potenciais que precisam ser reconhecidos, um teste de triagem falso positivo pode causar grande problema emocional e, portanto, as amostras de sangue para a triagem devem ser rapidamente processadas e os resultados emitidos com prontidão e todo esforço deve ser feito esclarecer o diagnóstico e reduzir o impacto negativo. Outro desafio é o teste falso-negativo que pode causar atraso importante no diagnóstico se a rede básica tomá-lo como excludente do diagnóstico e menosprezar os sinais clínicos da doença. Apesar de um resultado negativo, uma avaliação diagnóstica, incluindo o teste do suor e/ou análise do DNA, deve ser feita em toda criança que apresentar manifestações clínicas de FC, íleo meconial e naqueles que possuem irmãos portadores da doença.

HISTÓRICO

Em 1979, Crossley et AL., observaram que o nível plasmático de tripsinogênio (IRT) era aumentado em RN com Fibrose Cística. Acredita-se que o aumento da tripsina sérica seja secundário ao refluxo de secreção pancreática provocado pela obstrução dos ductos no pâncreas. O teste pode ser realizado com amostra de sangue colhido em papel de filtro, na mesma amostra realizada para o teste do pezinho para fenilcetonúria, hipotireodismo congênito e anemia falciforme.
O Teste do Pezinho nome popular para a Triagem Neonatal foi incorporada ao Sistema Único de Saúde (SUS) no ano de 1992 através da Portaria GM/MS n°22, de 15 de janeiro de 1992, que determinava a obrigatoriedade do teste em todos os RN vivos e incluía a avaliação para Fenilcetonúria e Hipotireoidismo Congênito. Em 2001 o Ministério da Saúde, pela Portaria GM/MS nº822 de 6 de junho de 2001, criou o Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN), ampliando pelo Sistema Único de Saúde (SUS) o diagnóstico precoce para Fibrose Cística, Anemia Falciforme e outras Hemoglobinopatias, além dos já disponibilizados. Este programa segue alguns princípios e diretrizes.

  1. Todo RN tem direito ao acesso à realização de testes de Triagem Neonatal, em conformidade com o disposto nesta Portaria. Os testes deverão ser realizados até o 30º dia de vida (preferencialmente entre o 2º e o 7º dia de vida), com coleta do material efetuada de acordo com os critérios técnicos estabelecidos no Manual de Normas Técnicas e Rotinas Operacionais do Programa Nacional de Triagem Neonatal, elaborado e publicado pela Secretaria de Assistência à Saúde/SAS/MS;
  2. O Programa Nacional de Triagem Neonatal deverá ser organizado de maneira a garantir plenamente o acesso aos recém-nascidos não só à realização dos exames preconizados e à confirmação diagnóstica, mas também ao acompanhamento e tratamento das doenças detectadas. Devem ser estruturados os fluxos de referência e contra-referência, os Postos de Coleta adequados e os respectivos Serviços de Referência em Triagem Neonatal/Acompanhamento e Tratamento de Doenças Congênitas de acordo com a Fase de Implantação do Programa, em conformidade com o estabelecido no Anexo III da Portaria.
  3. Todo RN suspeito de ser portador de uma das patologias triadas deverá ser reconvocado para a realização dos exames complementares confirmatórios, de acordo com o estabelecido no Manual de Normas Técnicas e Rotinas Operacionais do Programa Nacional de Triagem Neonatal.
  4. Todo RN vivo identificado e confirmado como portador de uma das patologias triadas tem direito ao acompanhamento, orientação e tratamento adequado, conforme descrito no Manual de Normas Técnicas e Rotinas Operacionais do Programa Nacional de Triagem Neonatal e nos respectivos Protocolos Clínicas e DiretrizesTerapêuticas
  5. As autoridades sanitárias nos níveis Federal, Estadual e Municipal, de acordo as respectivas competências e atribuições estabelecidas no Artigo 5º desta Portaria, serão responsáveis pela adoção das medidas pertinentes e adequadas à garantia dos direitos enunciados nas alíneas acima

COLETA

A Triagem Neonatal é feita a partir de gotas de sangue colhidas do calcanhar do recém-nascido. Por ser uma parte do corpo rica em vasos sangüíneos, o material pode ser colhido através de uma única punção rápida no pezinho, nas laterais inferiores do calcanhar em papel filtro SS903, recomendado pelo National Committee of Clinical Laboratory Standards (NCCLS), com áreas demarcadas em círculos. A amostra de sangue só poderá ser coletada em papel filtro fornecida pelo laboratório que irá proceder à realização de análises, uma vez que o laboratório controla cada lote de remessa de papel do fabricante.
O papel filtro utilizado na triagem é delicado e requer cuidados especiais no manuseio e armazenagem. Calor e umidade excessivos são as condições do ambiente que precisam ser evitadas, pois podem ser absorvidas pelo papel filtro sem que se perceba.
Em situações excepcionais o sangue poderá ser coletado por punção venosa sem anticoagulante ou ainda por punção no lóbulo auricular ou ponta dos dedos.
A coleta será realizada pelos postos de saúde municipais, APAEs, maternidades, hospitais e etc, e encaminhada ao Laboratório de Referência em Triagem Neonatal.

DIAGNÓSTICO LABORATORIAL PARA A TNFC

A metodologia usada para a triagem neonatal da Fibrose Cística se baseia na dosagem do tripsinogênio imunorreativo (IRT). A dosagem do IRT é um indicador indireto da doença, pois avalia a integridade da função pancreática. Se esta estiver normal por ocasião do nascimento o teste poderá ser negativo. O IRT é um precursor da enzima pancreática, cuja concentração costuma estar persistentemente elevada no sangue dos recém-nascidos com Fibrose Cística, mesmo nos casos onde ainda há suficiência pancreática. Este aumento ocorre, pois a fibrose pancreática que a maioria destes pacientes apresenta já ocorre no período intra-útero, levando a um refluxo das enzimas pancreáticas para a circulação, com aumento dos níveis do IRT.
A sensibilidade deste teste se situa ao redor de 95%, porém sua especificidade é baixa, variando de 32 a 74%, dependendo dos níveis de corte estipulados pelos laboratórios para o IRT. A presença de íleo meconial, sinal de alerta para o diagnóstico de Fibrose Cística, pode estar relacionada a testes falso-negativos, pois com a desobstrução intestinal ocorre rápida queda dos níveis da enzima no sangue.

Observar se o nível de corte para o IRT foi estabelecido em soro ou sangue total para evitar erro na interpretação

INTERPRETAÇÃO DE RESULTADOS IRT/ FIBROSE CISTICA

Optou-se para adotar como valores de referência normais, níveis abaixo de 70 ng/ml em sangue total até 30 dias de vida. Após este período o IRT tende a baixar sua concentração e normalizar sua referência no sangue, não devendo mais ser utilizado como exame para triagem, mesmo que a criança seja suspeita de ser portadora de Fibrose Cística.

Se o resultado da dosagem de IRT é positivo, deverá ser realizada nova dosagem em papel filtro após duas semanas e até no máximo o trigésimo dia. E se ainda se mostrar elevada, um teste de eletrólitos no suor/ou análise de DNA deve ser realizado para tentativa de confirmação diagnóstica.

SOBRE O TESTE DO SUOR

Todo neonato com duas amostras positivas coletadas dentro do período estabelecido devem ser encaminhados para o Teste do Suor. Também, aqueles neonatos cuja primeira amostra é positiva e não foi possível realizar a segunda amostra até 30 dias de vida. O uso de dosagem de IRT em crianças após esta idade não é recomendado e o teste do suor deve ser o exame indicado.

Mesmo se o IRT for normal, o que não descarta completamente o diagnóstico de Fibrose Cística, se uma criança apresentar sintomas sugestivos da doença – baixo ganho pôndero-estatural ou desnutrição, desidratação hiponatrêmica, esteatorréia, tosse crônica, pneumonia e/ou bronquite recorrente, suor salgado, polipose nasal, etc – ela deve ser submetida ao teste do suor. Independente do valor do IRT, pacientes que tiveram íleo meconial e que tenham irmãos com Fibrose Cística devem se submeter ao teste do suor também.

DIRETRIZES PARA IMPLANTAÇÃO DE PROGRAMAS DE TNFC

ALGORITMO PARA A TRIAGEM
IRT/ IRT

O sistema de triagem neonatal inclui a coleta da primeira amostra em torno do segundo dia e se positiva, isto é com valor maior que 70 ng/mL, o RN será convocado para a coleta de uma segunda, em torno do décimo quinto dia para repetir a dosagem do IRT. Tendo em vista que os valores da IRT diminuem após a primeira semana de vida, o tempo da segunda coleta tem que ser levado em conta na interpretação do resultado.

3. NOTIFICAÇÃO E ENCAMINHAMENTO DOS CASOS DETECTADOS

A criança com teste de triagem positivo para FC nas duas amostras deve ser e encaminhada para avaliação clínica e diagnóstica. Esta responsabilidade será exercida pelo programa estadual de triagem neonatal que estabelecerá a rede de assistência de referência para avaliação clínica precoce e posterior realização do teste do suor para confirmação do diagnóstico. Devem ser notificados à Coordenadoria Estadual do Programa Nacional de Triagem Neonatal, todos os casos confirmados de FC pelos Centros de Referência em Fibrose Cística e em relatório a ser emitido mensalmente pelos Centros Regionais de Triagem Neonatal.

ASPECTOS CLÍNICOS

É pertinente a preocupação em relação às conseqüências dos resultados falsos negativos e falta de conhecimento da doença que retardam o diagnóstico e tratamento, e dos falsos positivos como causa de ansiedade dos pais, capaz de confundi-los a respeito do risco dos filhos em desenvolverem a fibrose cística após a triagem falsa- positiva e, inclusive, desencorajá-los sobre futuras gestações.

Também há a desvantagem de que a concentração de tripsinogênio começa a declinar em poucas semanas após o nascimento, tornando-se o método de diagnóstico restrito ao primeiro mês de vida.

A dosagem do IRT é um indicador indireto da doença, pois avalia a integridade da função pancreática. Se esta estiver normal por ocasião do nascimento, o teste poderá ser negativo. Os resultados falso-negativos e falso-positivos estão relacionados principalmente a condições clínicas no período neonatal, tais como insuficiência respiratória, hipoglicemias e doenças genéticas.

Quando o teste for positivo com valores acima do padrão adotado, geralmente 70ng/mL, deverá ser repetido em até 30 dias. Caso persista positivo, o paciente deverá ser submetido ao teste do suor para confirmar ou afastar a FC.

Angustia dos pais também ocorre quando as dosagens de IRT são anormais, mas o diagnóstico não é confirmado pelo teste do suor negativo, quando os valores de cloretos são limítrofes ou quando se detectam heterozigotos. O acompanhamento médico e a realização de exames são necessários, por vezes, por um longo período, até confirmar ou afastar a doença. O diagnóstico precoce de casos de apresentação branda da doença, que teria uma boa evolução no decorrer da vida, também gera transtornos desnecessários para as famílias. Ademais, como a taxa de falso-negativos pode atingir até 10% das crianças triadas, é fundamental que os pediatras solicitem o teste do suor em todo caso suspeito.

Finalmente, a TNN proporciona um aconselhamento genético e reprodutivo e dá a oportunidade de encaminhar os pacientes para centros de referência de FC para cuidados especializados e estratégias de prevenção. Pode também eliminar erros diagnósticos, condutas inadequadas e complicações da doença, prevenindo algumas mortes e diminuindo o estresse psicológico gerado pelo diagnóstico tardio.

Existe uma grande variabilidade no seu espectro clínico, podendo manifestar-se precocemente e com muita gravidade ou com sintomas mais leves, que comumente postergam o diagnóstico para a vida adulta. Atualmente, a sobrevida destes pacientes aumentou de forma significativa (mediana de cerca de 40 anos), devido ao diagnóstico precoce e instituição imediata das intervenções terapêuticas específicas.

NoBrasil,ondetemosuma médiade diagnósticomaistardia comparadaapaíses desenvolvidos, soma-seaosbenefícios do diagnósticoprecoce, ummelhor entendimentoda doença do pontodevistaclínicoegenético.

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Relatora:
Neiva Damasceno
Presidente do Grupo Brasileiro de Estudos de Fibrose Cística(GBEFC) e membro do Departamento Científico de Pneumologia da SPSP; Professora Assistente de Pneumologia Pediátrica da Irmandade Santa Casa de Misericórdia de São Paulo; Coordenadora do Serviço de Referência em Fibrose Cística da ISCSP, São Paulo, SP.

Texto divulgado em 12/03/2010.