Um terreno que ninguém quer pisar

Um terreno que ninguém quer pisar

O poder curativo e analgésico de uma ‘assoprada’ de mãe sobre um arranhão ou sobre o local de uma pancadinha qualquer, que um filho tenha sofrido, tem um tempo de eficácia restrito na vida de uma criança. É igualmente limitado como a crença que a criança tem em Papai Noel ou no Coelhinho da Páscoa ou na fada do dente. Esse tempo simbólico, da fantasia, do ‘faz de conta’, da magia, é traço característico da primeira infância (até 6 anos de idade). Gradativamente, o pensamento concreto vai perdendo densidade. Na adolescência, o pensamento abstrato, próprio ao adulto, vai ganhando espaço.

É importante entender essas variações de percepção do mundo pela criança, especialmente quando há necessidade de se lidar com perdas, sejam elas de um brinquedo de estimação, ou de um animal da família e, em particular, da morte de um familiar próximo.

O luto infantil é um tema desafiador para uma família. Como e quando dar a notícia terrível sobre a morte de um parente muito querido? A criança deve ou não assistir à cerimônia de enterro?

Algumas premissas básicas:

  • A criança é capaz de perceber a ausência de alguém querido e as reações dos adultos à sua volta.
  • A criança vive no mesmo mundo que os adultos, estando, portanto, sujeita às mesmas vulnerabilidades, incertezas e possibilidades de sofrimento.
  • O tempo de luto é um tempo de sentimentos e experiências; por isso, é totalmente individual, tem a sua própria cronologia e, em cada indivíduo, a sua singularidade.
  • O luto infantil é diferente do luto do adulto porque o desenvolvimento psicoemocional da criança ainda está acontecendo, por isso se estende ao longo do período de seu crescimento e amadurecimento.
  • A criança pode se sentir desamparada, solitária, se os adultos não a ajudarem a entender a situação. Esse silêncio pode contribuir para que interprete de forma errada, por exemplo: sentir-se culpada pela pessoa querida ter partido.
  • O luto é um processo natural, não é uma doença. Pode, entretanto, ser “complicado”, seja pelo prolongamento do sofrimento, seja pela sua ausência.
  • As eventuais alterações de comportamento da criança, tanto no ambiente intrafamiliar, quanto na escola ou nos espaços sociais que frequenta, são de fundamental valor para indicar aos pais a necessidade de buscar o auxílio de um profissional da área de psicologia infantil.

Caminhando nesse terreno que ninguém quer pisar.

Com o medo de aumentar o sofrimento da criança, tentando protegê-la ou na crença de que ela é incapaz de entender o que está acontecendo, os adultos evitam falar sobre morte com a criança. É um erro, pois o falar sobre o assunto ajuda a elaborar a perda.

Nessa conversa, sempre difícil mas necessária, é condição básica que o adulto seja verdadeiro e claro. Não deve esconder seus próprios sentimentos, nem ter receio de manifestá-los. É importante, acima de tudo, criar um espaço amoroso, de acolhimento, para que a criança possa verbalizar o que está sentindo, expor a sua percepção sobre aquele momento. É fundamental usar as palavras corretas, como “morreu” e “morte”. Muito cuidado com termos como “viajou”, “partiu”, “virou uma estrelinha” ou “Papai do Céu a levou para morar com ele”, pois talvez gerem confusão e falsas expectativas para a criança. Satisfaça a curiosidade da criança quanto aos detalhes do ocorrido, sempre, adequando sua fala à capacidade de entendimento inerente à faixa etária em que ela está. Não é preciso saber as respostas para todas as perguntas que possam surgir. Mas é importante deixar claro que o corpo não funciona mais depois da morte. Não há problema em dizer à criança “não sei”, ou “nunca pensei sobre isso” e abrir espaço para a construção conjunta de um entendimento. (*)

 

Saiba mais

(*) recomendamos para o aprofundamento do assunto: “Cartilha de orientações sobre o luto das crianças [livro eletrônico]: grupo de estudos em luto. [Alessandra Aguiar Vieira, Leila Costa Volpon, Paula da Silva Kioroglo Reine; ilustração Marina da Costa Marques]. Ribeirão Preto, SP: Ed. dos Autores, 2022. PDF”.

 

Relator:
Fernando MF Oliveira
Coordenador do Blog Pediatra Orienta da SPSP