Avanços no tratamento da fibrose cística

Avanços no tratamento da fibrose cística

A fibrose cística (FC), historicamente conhecida como a “doença do beijo salgado”, devido à maior perda de sal no suor que é percebida ao se beijar a criança e/ou visualização de cristais de sal, principalmente na testa, foi reconhecida como nova entidade de doença em 1938, pela patologista americana Dra. Dorothy H. Andersen, que já ressaltava que se repetia na mesma família.

Cinquenta e um anos depois, em 8 de setembro de 1989, comemorou-se a identificação do gene causador da doença e a alteração (variável) mais comum em pessoas com FC. Essa alteração acarreta a falta da produção de uma proteína ou que ela seja disfuncional. No organismo, a proteína forma um canal para o transporte de sal nas células epiteliais e a ausência ou desregulação da sua função acarreta secreções desidratadas e espessas em vários órgãos. Porém, além dessa primeira variável descrita, denominada como deleção F508 (falta do aminoácido fenilalanina na proteína), foram identificadas muitas outras alterações que causam doença leve ou grave. No Brasil, apenas cerca de 50% dos pacientes têm uma cópia F508.

Nos pulmões, o muco obstrui as vias aéreas e aprisiona germes como bactérias, favorecendo infecção e inflamação, que se manifestam como tosse crônica, confundida com diversas doenças das vias aéreas inferiores, como pneumonia, bronquite ou asma, e superiores, como sinusite crônica e pólipos nasais.

No pâncreas, os canais obstruídos pela secreção espessa impedem a liberação de enzimas digestivas essenciais na digestão de alimentos e nutrientes, resultando em desnutrição e crescimento deficiente, apesar de um apetite voraz e fezes gordurosas e volumosas frequentes ou dificuldade para evacuar.

No fígado, o muco espesso pode bloquear o ducto biliar, causando doença hepática. Nos homens, a FC pode afetar sua capacidade de ter filhos.

A apresentação clínica da doença é extremamente variável, mas a maioria apresenta sintomas ao nascimento ou logo após; infecções respiratórias frequentes e baixo ganho de peso são as manifestações mais comuns.

A FC é uma doença genética. Pessoas com FC herdaram duas cópias do gene com defeitos, uma cópia de cada progenitor (portadores), mas que não têm a doença. Cada vez que dois portadores de FC geram uma criança, as chances são: 25% (1 em 4) terá FC; 50% (1 em 2) será portadora, mas não terá FC; 25% (1 em 4) não será portadora e não terá FC. Porém, esse risco é considerado alto e se repete a cada gestação.

 A doença afeta ambos os sexos, todas as etnias, porém é vista mais frequentemente em brancos.

A FC é uma doença complexa. Os sintomas e a gravidade podem diferir muito de pessoa para pessoa e mesmo entre irmãos. Muitos fatores influenciam o curso da doença, incluindo a idade do diagnóstico, início precoce do tratamento e adesão.

No Brasil, existe registro de mais de seis mil pessoas com a doença e um a cada dez mil nascidos vivos possui a doença, segundo o Registro Brasileiro de Fibrose Cística (REBRAFC) – mas supõe-se que existam muitas pessoas subdiagnosticadas.

Há cerca de 40 mil crianças e adultos vivendo com FC nos EUA e cerca de 105 mil pessoas foram diagnosticadas com FC no mundo.

Enormes avanços nos cuidados especializados em FC acrescentaram anos na sobrevida e melhoraram a qualidade de vida das pessoas com fibrose cística. Durante a década de 1950, uma criança com FC raramente vivia o suficiente para frequentar a escola primária.

Nas duas últimas décadas, o conhecimento dos mecanismos da doença e a descoberta de drogas denominadas de moduladoras (corretoras) da proteína defeituosa, isto é, corretoras do defeito básico, mostraram eficácia surpreendente, com melhorias no ganho de peso, doença pulmonar, “crises de piora” respiratória e qualidade de vida, constituindo um novo marco histórico.

No Brasil foram aprovadas duas drogas moduladoras, uma delas direcionada à variável genética mais comum (deleção F508) para pacientes maiores de seis anos. Para as crianças entre dois e seis anos e pacientes com variáveis diversas, ainda se aguarda incorporação pelo Ministério da Saúde, embora já estejam aprovadas e em uso em vários países no mundo. Com esse novo tratamento, estima-se que a sobrevida de pacientes nascidos com fibrose cística será equivalente à de pessoas sem a doença.

A ampla instalação do programa de triagem neonatal proporciona o diagnóstico precoce e consequentemente o tratamento, mas é urgente e justo fornecer o tratamento direcionado ao defeito básico a todos os pacientes que possam ser beneficiados.

 

Relatora:

Neiva Damaceno
Professora Assistente de Pneumologia Pediátrica do Departamento de Pediatria da Santa Casa de SP e Coordenadora do Serviço de Referência de FC
Membro do Departamento Científico de Pneumologia da SPSP